LUGARES DE CUIDADO E MEMÓRIA
Raia e Drogasil: arquiteturas de interesse histórico
OLHAR DA ARQUITETURA

A construção de um acervo de farmácias em edifícios históricos.

Por Raquel Schenkman
Sempre em transformação, o ambiente em que vivemos se renova, mas guarda sua memória, que permanece e pode ser relembrada, ainda que nos detalhes a serem redescobertos. Nesse processo de rememoração, recuperamos e atribuímos valore significado a lugares, objetos ou espaços construídos; apropriamo-nos deles para contar, explicar e transmitir nossa própria história.

O incentivo à preservação do patrimônio cultural edificado é, sem dúvida, um gesto de cuidado e de afeto com as histórias de pessoas e lugares. A arquitetura presente nas cidades é parte significativa do que conforma e qualifica o ambiente urbano, uma vez que por meio dela são propostas e implantadas soluções estéticas, econômicas, materiais, organizam-se usos e funções. A arquitetura é produto e representação, documento e testemunho de processos e dinâmicas da relação em sociedade. Por esse motivo, reutilizar, conservar ou restaurar um edifício tem como pressuposto reconhecê-lo como bem cultural.

Preservar o patrimônio arquitetônico constituiu desafio sempre presente no processo de desenvolvimento urbano, uma vez que para tal impõe-se uma série de restrições necessárias. Para a Raia Drogasil, o ano de 2021 marcou uma inflexão na forma de lidar com o tema. Nesse ano, a partir de um trabalho de reconhecimento e valorização do acervo de arquiteturas históricas ocupadas por lojas de suas marcas no país, sob a coordenação do arquiteto Miguel Góes [MgoesAD], o grupo procurou dar visibilidade a esses imóveis e suas histórias.

Por vezes, essas farmácias integram parte de um simples e antigo casario em uma pequena cidade; em outras, situam-se em prédios grandiosos ou modernos, de destaque na paisagem urbana. Produzidos em diferentes momentos e com características distintas, esses imóveis têm, no entanto, certa unidade pelos atributos da rede de farmácias que receberam em suas acomodações. Quando se observa o endereço dessas farmácias, há uma clara predominância de esquinas, ruas de vocação comercial e central ou imóveis em meio a conjuntos arquitetônicos dotados de qualidade urbanística, como áreas de calçadas largas, com passeios acessíveis para pedestres, em espaços estruturados e generosos. Nessas situações de destaque, todo o cuidado na manutenção dessas qualidades é fundamental para garantir um projeto bem integrado à paisagem de cada lugar, em conexão com seu entorno.

Dos elementos de comunicação visual instalados à iluminação, à nova pintura, à implantação de vitrines e à adaptação acessível, tudo deve passar por decisões elaboradas de um projeto que reconhece seu objeto de intervenção.A partir de um mapeamento inicial, foi organizado, com uma equipe de pesquisa, um inventário sistemático, com informações que contribuem para que se conheça a história da construção desses prédios, seus promotores, antigos ocupantes, suas transformações ao longo do tempo e sua situação na cidade. Como diz a definição em dicionário, inventariar significa também encontrar, tornar conhecido, identificar, além de descrever, de maneira integral.
Fachada lateral da farmácia Drogaraia, com platibanda decorativa com detalhes em gesso branco e textura de cor gelo. O roda teto exibe faixas horizontais verde e azul entalhadas, acima de toldos verdes fixados por hastes de metal branco nas paredes. Abaixo é possível ver grandes janelas de madeira pintadas de branco, com venezianas e vidros retangulares. Ao fundo, o céu azul completa a cena.
Detalhe arquitetônico: Sancas de gesso aplicadas na fachada externa do edifício.
O valor arquitetônico ou histórico foi avaliado em um conjunto heterogêneo de edificações, sendo consideradas as qualidades próprias de cada exemplar e a suar elação enquanto referência cultural em cada cidade ou rua. Vários critérios foram observados para a seleção, tais como sua implantação, recuos, gabarito, verticalização, elementos decorativos e arquitetônicos das fachadas, sendo os edifícios que abrigam as lojas agrupados a partir de tipologias identificadas em relação à sua inserção na paisagem urbana.

Para o livro, a seleção apresentada reuniu 43 edificações em 31 cidades, em todas as regiões do país. Grande parte compõe o patrimônio cultural já reconhecido na sua região ou está localizada em áreas protegidas por legislação de patrimônio cultural. Há também, no entanto, exemplos de uma arquitetura anônima, singela, de valor, pelo fato de reproduzir, com qualidade, o estilo e a técnica arquitetônica do seu tempo. Constitui este livro, portanto, registro de uma amostra desse projeto, que é mais amplo, está em andamento e tem desdobramentos, uma vez que a rede se mantém em expansão e esse acervo vai sendo continuamente atualizado.

Podemos ler através da arquitetura, da configuração das ruas, das estruturas urbanas e das paisagens, como cada lugar se constituiu ao longo do tempo, e refletir sobre seu significado no momento presente. Nesse sentido, a série de edificações, por vezes casas ou prédios comuns, locais de trabalho e de consumo, foram estudadas detidamente, como bens culturais, de modo a colaborar com a sua preservação. A pesquisa, que engloba cada edificação mas também a formação de cada via e bairro ou cidade em que se insere, foi baseada em documentação, relatos, cartões-postais, notícias de jornais, cartografias, plantas e escrituras antigas, além de ampla bibliografia. A partir dela, foi possível mapear proprietários, usuários, usos anteriores, técnicas construtivas, decorações da moda, construtores e eventuais reformas por que passou cada prédio. O levantamento do material documental analisado em relação à situação atual, retratada nas fotografias de Pedro Prata, nos permitiu compreender com ainda maior clareza a trajetória desses patrimônios.

Testemunhos de histórias, esses prédios revelam diversas narrativas e vozes que explicam a formação dos centros urbanos, seus processos de transformação e modernização, o cotidiano e seus habitantes. São diferentes arquiteturas de norte a sul do país, onde as atividades varejistas têm um papel fundamental e por vezes protagonista, no que se refere ao desenvolvimento e ao estabelecimento das relações entre as pessoas e os lugares. Lado a lado, os edifícios compõem um conjunto representativo das formas tradicionais do comércio nas áreas centrais de cidades brasileiras e um conjunto significativo enquanto patrimônio cultural arquitetônico ocupado por lojas da RD.

Construídos em sua maioria na primeira metade do século XX, esses edifícios de arquitetura eclética, neocolonial, déco ou moderna sobreviveram e se adaptaram a grandes transformações que aconteceram à sua volta, como alargamentos viários, alterações de calçadas, processos de substituição de casas por prédios e moradias por comércios, bastante característicos de áreas centrais.
EDIFÍCIOS

Tipos de edificações que abrigam lojas e histórias

Conheça os edifícios, preservados e adaptados, que abrigam nossas farmácias